sexta-feira, 18 de setembro de 2015

65 anos de TV no Brasil: relembre as cenas dos primeiros capítulos, por Lima Duarte

Imagens de Lima Duarte extraídas do blog Respeite o Idoso




Com tanta experiência e tendo atingido um patamar imconparável na TV, o artista foi o responsável pelo prefácio do livro "A Hollywood Brasileira – Panorama da telenovela no Brasil", de Mauro Alencar. Acompanhe o delicioso texto que conta como nasceu a televisão no Brasil e quem foram seus pioneiros. Lembrando que a TV completa 65 anos agora em 2015, neste dia 18 de setembro.



AMIGOS, TARDES E PETECAS
(Lima Duarte)

A gente chegou para jogar peteca – Hebe Camargo, Lolita Rodrigues, Walter Forster, Heitor Andrade, Dionísio Azevedo, Ribeiro Filho, Osni Silva e eu. Todos grandes amigos.

Era de tardezinha e isso aconteceu num tempo em que ainda existiam amigos, tardes e petecas... Um sujeito lá virou para nós e disse: “Não! Não podem mais jogar aqui!” O Osni Silva, que era o mais destemperado, perguntou: “Não pode por quê?” E o homem respondeu: “Porque nós vamos limpar este terreno e amanhã começamos a furar tudo para fazer a televisão.”

Era 1948 e eu trabalhava lá desde 1946. Tudo comprovado e atestado em minha carteira profissional. Eu tinha 16 anos e chegara de Minas Gerais, mais precisamente de Desemboque, em 1946, de maneira que a televisão veio estragar o nosso campo de peteca. Furaram, arrebentaram tudo e construíram a primeira emissora de televisão da América Latina, a TV Tupi Difusora de São Paulo. A segunda foi a TV Cubana, inaugurada no mesmo ano, mas no mês de novembro. A Tupi era de setembro, 18 de setembro mais precisamente. O Walter Forster morreu sustentando que a primeira fora a Cubana e que Havana naquela época era o bordel dos americanos; então, nada mais natural do que a existência de uma TV num bordel. Eu estive em Havana, não a do Fulgêncio (o bordel), mas a do Fidel, um povo íntegro, digno e corajoso, e comprovei que a televisão brasileira é dois meses mais velha.

Tudo isso porque eu considero importante que saibam do contexto em que tudo aconteceu. O contexto era este: amigos, tardes, petecas, e é bom que saibam que eu estive lá desde o começo, ou antes do começo.

Quando a televisão ficou pronta, instalou-se um problema: quem seria o primeiro diretor artístico da América Latina? Existiam três candidatos (eu gosto muito de pensar que televisão seria essa, se um dos outros dois tivesse sido o escolhido): Walter George Durst, Túlio de Lemos e Cassiano Gabus Mendes. Venceu o último, que, uma vez escolhido para ser o diretor, disse: “Eu exijo que o meu assistente seja o Lima Duarte.” Eu gritei: “Opa! Que é isso, está querendo me estrepar? Vou deixar de ser o melhor sonoplasta da Rádio Tupi Difusora para ser diretor de televisão? De jeito nenhum.” Foi então que ele escolheu o Luiz Gallon e, como assistente do Gallon, o Luiz Gustavo, seu cunhado.

É realmente verdadeira aquela história que contam até hoje de que no dia 18 de setembro, depois da inauguração, houve um jantar. Já na sobremesa e antes do cafezinho, o Cassiano perguntou: “Ih... e amanhã o que é que a gente põe no ar?!” Saímos correndo aos consulados para ver quem tinha algum filme para ser exibido na televisão e achamos uma porção: filmes sobre história natural, biologia, Cubismo, os perigos da doença venérea, os males que a sífilis traz e Marshall McLuhan; enfim, uma televisão muito louca.

Um ano depois desse happening, em 1951, o Cassiano teve a idéia de fazer uma telenovela, pois é bom que se diga que a televisão no Brasil foi implantada e sustentada por gente de rádio. Nem jornalistas, nem intelectuais, nem o pessoal do teatro, nem a comunidade universitária, ninguém tomou conhecimento e, nós, os do rádio-teatro, tocamos aquilo. Nada mais natural do que a adaptação de uma novela de rádio para a televisão. Foi quando aconteceu o tão falado fenômeno Sua Vida me Pertence, de Walter Forster, interpretada pelo Walter e pela Vida Alves.

Nessa telenovela apareceu não só o primeiro beijo, mas também o primeiro bandido, o primeiro delegado, o primeiro médico, o primeiro pai, a primeira mãe, o primeiro amor, o primeiro desengano, a primeira esperança, a primeira lágrima, a primeira insídia e o primeiro final feliz, com o tal beijo; enfim, tudo o que existe nas novelas até hoje. O engraçado nesse primeiro beijo é que a autoridade de plantão o proibiu, argumentando: “Não. As televisões entram nos lares e esses lábios unindo-se em lascívia, penetrando o recôndito do lar brasileiro, vão ofender a moral da família.” Bem, era um tempo em que ainda existiam famílias, lábios e lascívia. Os autores disseram: “Não. O beijo é necessário”, e os atores disseram que também queriam beijar. O general insistiu: “Não.” O juiz também disse: “Não.” O bispo fez eco: “Não, não e não. Ainda se fossem americanos, mas são brasileiros beijando-se com bocas brasileiras, isso nunca.” No dia do último capítulo que iria ao ar à oito horas da noite, houve uma reunião na sede da censura para a decisão do beija ou não beija. Só às seis horas saiu o veredicto. “Beija, mas de boca fechada.” Essa foi a melhor história da primeira telenovela ainda não diária. Eu estava lá e era o bandido.

O mais curioso, e que talvez mereça mesmo uma análise, foi a segunda telenovela. Um êxito enorme! Claro, só havia nós no ar e a novela era rural, já a segunda... Chamava-se Sangue na Terra, de Péricles Leal, ele também um intelectual, paraibano, filho de Simião Leal, jurista, ficcionista, um homem de letras. A novela passava-se na Serra de Borborema e contava a história de Antonio Silvino, o maior cabeça de jagunço que jamais houve, sob o comando de quem o iniciou no cangaço, Virgulino Ferreira, o Lampião.

Se for verdade que o Brasil passou da sociedade rural à sociedade urbana, ou se está passando em apenas cinqüenta anos, não menos verdade é que o brasileiro ficou com um pé na roça, e desse pé na roça surgiram novelas lindas! Entre as dez melhores eu destacaria umas sete de ambientação rural; a primeira em cores, O Bem Amado, na qual eu também estava, pois era o Zeca Diabo; a primeira da “nova República”, Roque Santeiro, em que eu estava também, fazendo Sinhozinho Malta.

Para concluir, a novela que marcou aquele período inicial foi mesmo O Direito de Nascer, também dirigida por mim. Uma novela rigorosamente genial. Como era novela de rádio cubana, transportada para televisão e para o Brasil, eram necessários muitos acontecimentos. Para falar dela, aproveito Umberto Eco em Viagem na Irrealidade Cotidiana:
“(...) é preciso colocar tudo e para colocar tudo é preciso escolher no repertório do já comprovado. Quando a seleção do já comprovado é limitada, tem-se a série maneirista, o seriadozinho e até mesmo o kitsch, mas, quando do já comprovado se coloca tudo, tem-se uma arquitetura como a da igreja Sagrada Família, de Gaudí. Fica-se com vertigem, esbarra-se na genialidade”.

Depois de O Direito de Nascer, uma pá de cal despencou sobre os barões, filhos naturais, sinhazinhas, babás remanescentes da escravidão, coronéis furibundos. Essa pá de cal chamou-se Beto Rockfeller, de autoria de Bráulio Pedroso, na época editor do suplemento de O Estado de São Paulo, que desenvolveu a novela baseado numa idéia de Cassiano Gabus Mendes para a interpretação de Luiz Gustavo e direção de Lima Duarte. Assim, só me restava mesmo ir para a TV Globo, emissora em que estreara o segundo grande executivo de televisão: José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, que contratou a equipe de Beto Rockfeller para fazer na Globo uma revolução, O Bofe, a mais anárquica de todas as telenovelas, escrita pelo mesmo Bráulio Pedroso. Mas revolução não se encomenda, acontece, e a novela acabou não obtendo o sucesso esperado. Eu ainda tinha um mês de contrato a cumprir e fui obrigado a fazer um papel episódico na primeira novela em cores, O Bem-Amado. Iria participar de cinco capítulos apenas, mas o Zeca Diabo não pôde sair – o público obrigou-os a mantê-lo até o fim da trama e matar Odorico Paraguaçu, que inaugurou o cemitério de Scucupira.

Bem, esse foi o começo das telenovelas. Agora se diz que os reality shows ocuparão, na afetividade popular, o lugar das telenovelas. Eu gosto da idéia de que essa nova maneira de contar histórias venha a substituir a antiga. Se for verdade que cada movimento considerado artístico empurra o anterior para o território da arte absoluta, assim como a dança empurrou a música, o teatro empurrou a dança, o cinema empurrou o teatro e o teleteatro empurrou o cinema, que bom se os reality shows nos empurrarem mesmo para o recôndito universo das grandes histórias que contam com grandeza, sabedoria, ternura e beleza a história de um povo e seu destino.

Escrito por Lima Duarte – Prefácio do livro
“A Hollywood Brasileira – Panorama da Telenovela no Brasil”, de Mauro Alencar.

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